Maverick

Maverick GT V8 Preto 1978

Na frente o farol não ilumina nada. Nenhum carro. Só o asfalto negro. Na distância eu consigo ver um par de “olhos” vermelhos, provavelmente a lanterna traseira de algum caminhão. No retrovisor eu não vejo nada. Nenhum carro vem atrás, só a noite escura e sem lua me segue. As minhas mãos estão grudadas na direção, segurando firme, quase cravando a unha no couro que reveste o volante. O coração bate acelerado, mas não tão acelerado quanto o motor do carro. Aquele motor com um rosnado ensurdecedor. Um legítimo motor V8, em um legítimo Maverick GT 78. Não consigo ouvir os meus pensamentos; inferno, eu não quero ouvir os meus pensamentos, não quero pensar em nada. Só quero esquecer, esquecer tudo. Não acredito no que eu fiz. Não, eu não fiz nada, ELE é quem fez. Mas isso não importa, eles vão me culpar. Sempre me culpam, de tudo. Mas isso realmente não importa agora. Eu só tenho que me afastar o mais rápido possível de lá, e é isso que eu estou fazendo. Com o acelerador grudado no chão do carro, o caminhão parece ficar cada vez mais próximo. Eu não me importo com buracos na estrada, ou qualquer outro obstáculo pelo caminho. Se o carro agüentar, eu também agüento; e ele agüenta. Eu não sei onde estou, e nem quero saber. Uma estrada secundária qualquer no interior de algum estado qualquer. Não importa para onde estou indo, só importa de onde eu estou fugindo e o quão rápido eu consigo fazer isso. E eu estou fazendo isso bem rápido.

Agora o caminhão está bem mais perto, mais alguns minutos e eu consigo alcançar ele. O ponteiro da gasolina não me dá boas noticias, assim como todo o resto desde que eu entrei nesse carro. Maldito dia que eu resolvi ganhar um dinheiro fácil. Era uma tarefa simples, levar o carro para o dono em outra cidade. Mais nada. E foi simples, até que ELE apareceu. O caminhão esta bem na minha frente agora. Eu resolvo não perder tempo buzinando para pedir passagem, simplesmente passo voando do lado dele. O caminhão parece estar parado. Nessas horas é que se vê do que um motor V8 é capaz. Eu preciso chegar em um posto de gasolina, e rápido, se eu quero continuar. A estrada daqui pra frente parece ser só minha, não parece ter mais ninguém por vários quilômetros à frente. O caminhão lá atrás agora é só um par de luzinhas no retrovisor. Não parece ser maior que um vaga-lume parado no espelho. De repente eu vejo algo que me faz pisar no freio. Os pneus gritam, e o carro se joga para frente. Se eu não seguro firme o volante eu saio voando pelo pára-brisa. Chego até a pensar se isso não seria melhor. Depois de vários metros o carro para. Eu engato a ré e volto um pouco, me animando quando vejo o que me fez parar. Uma placa. Eu nunca pensei que fosse ficar feliz por ver uma simples placa. Nela está indicado que há um posto de gasolina a alguns quilômetros mais para frente, justamente onde a estrada que eu estou se encontra com uma estrada estadual. É arriscado, mas eu tenho que arriscar. Eu preciso de combustível, se pretendo continuar. Depois de me decidir, eu engato a primeira e disparo tão rápido quanto eu parei.

Só diminuo a velocidade quando vejo as luzes do posto. Não quero chamar a atenção, o que é impossível com um carro como esse. A pintura metálica mais negra que a noite, parece refletir toda luz que atinge ela, fazendo o carro parecer o céu noturno cheio de estrelas. As entradas de ar cromadas no capô do carro, que parecem as narinas dilatadas de um touro que está liderando o estouro do rebanho. Os pára-choques, também cromados, duros como pedra que parecem dizer “saiam da minha frente ou sofram as conseqüências”. Pneus largos que fazem o carro agarrar o pavimento como se fosse velcro. As quatro saídas do escapamento, para dar vazão àquela potência toda. Como eu disse, é difícil não notar esse carro. Mas eu tento ser o mais discreto possível. Quando entro no posto já estou indo bem devagar, mas isso só faz o ronco do motor chamar mais atenção. Eu paro em uma bomba de gasolina isolada das outras. Logo vem um atendente:

– Que carrão eim doutor!
– É, bonito ele. Enche o tanque por favor.

Eu tento cortar o papo o mais rápido possível, mas é mais fácil falar do que fazer.

– E quanto ele faz? Quantos quilômetros por litro?
– Eu não sei, o carro não é meu.
– É, o meu tio tinha um desse, era bunitão!
– É, todo mundo parece ter um parente ou amigo que teve um desse.

Eu respondo meio grosseiro para ver se ele fica quieto, mas isso não parece acanhar o rapaz.

– E quantos cilindros é esse?
– 8.
– Nossa! 8? Deve correr muito esse carro! Quanto ele faz? Chega a 200?
– Provavelmente.

Eu já estou começando a ficar nervoso, olho em volta para ver se tem mais alguém me olhando, e em todos os lugares parece que tem alguém olhando o carro. Como eu disse, é difícil não notar ele.

– E quanto vale um desse doutor?
– Não sei.
– Da um chute ai! Uns 2000?
– Sei lá, pode ser.
– Só isso?

Para evitar mais perguntas eu resolvo responder a pergunta do rapaz e encerrar logo o assunto.

– Depende do carro, e depende do estado do carro. Você pode achar de 500 a 50000. Depende muito da mecânica também. Esse aqui deve estar saindo uns 30000.

Quando eu vejo a expressão no rosto do rapaz, noto que ele vai fazer mais perguntas, perguntas que eu não tenho cabeça e nem tempo para responder, então já me adianto.

– Onde tem um telefone público por aqui?
– Ali do lado da lanchonete tem um, doutor!

Eu não perco tempo e saio correndo para o telefone. Eu não sei para quem ligar, não tenho para quem ligar, só queria sair de perto daquele carro e daquele rapaz por um tempo. Mas eu pego o telefone e por instinto acabo discando o telefone do meu irmão. Ele já tinha me livrado de encrenca antes, várias vezes. Talvez ele possa me ajudar mais uma vez, se acreditar em mim. Coisa difícil, nem eu acreditaria no que eu tenho para contar. Mas nada. Ele não esta em casa.

Eu estou segurando o telefone na mão, sentindo que eu tenho que voltar para o carro, para prosseguir com a minha viagem, quando eu escuto aquela voz de novo.

– Você não acha que foi um pouco rude com o garoto?

O meu coração parece parar de bater. O meu corpo se arrepia inteiro e a minha boca fica seca. ELE voltou.

– O que você quer comigo? Eu já falei pra me deixar em paz!
– Você não gostou das perguntas dele? Tudo bem, nós podemos mostrar para ele o que acontece com pessoas que se intrometem aonde não são chamadas…
– Não, a gente não vai fazer nada com ele. A gente não, você, você, VOCÊ! Eu não fiz aquilo, foi você! E você não vai fazer nada com o garoto.
– Pelo que eu me lembro, era você que estava dirigindo…
– NÃO!!! AQUELE NÃO ERA EU!!! AQUILO NÃO ERA EU!!!
– Se eu fosse você falava mais baixo, está chamando atenção…

Eu olho em volta e realmente há algumas pessoas me olhando, eu apenas disfarço e finjo que estou no telefone, já que a única coisa que eles estão vendo é um cara gritando sozinho. Eu olho para trás e ELE não está mais lá, sumiu de novo. Melhor assim.

Eu tenho que voltar para o carro. Decido que é hora de ir embora. Tiro duas notas de cem da carteira e vou até o carro. O rapaz fala que o tanque está cheio e antes que ele possa me falar em quanto ficou, eu coloco o dinheiro na mão dele e falo que o troco é dele. Eu ligo o carro e a besta acorda, rugindo e com fome, fome por asfalto. Eu pego o pequeno túnel que passa por baixo da rodovia estadual e volto para aquela estrada escura, sem iluminação ou identificação alguma. E vejo que fiz isso na hora certa. Já longe o suficiente, eu olho pelo retrovisor e vejo as luzes piscando. Luzes vermelhas e azuis, chegando no posto. As luzes dos carros de polícia. Eu não sei se são para mim, mas eu acelero para me afastar de lá o mais rápido possível.

Eu estou envolto na escuridão de novo agora. Olho para o painel e vejo o ponteiro da gasolina na posição de “cheio”. Isso me faz soltar um sorriso de alívio. Isso é o suficiente para me levar para bem longe dali. Eu nem me atrevo a olhar o ponteiro do velocímetro. A única coisa que eu preciso saber sobre a velocidade é que o carro está na quarta e última marcha, e o pedal do acelerador está no chão.

Eu resolvo ligar o rádio para tentar relaxar um pouco. Nada, só estática. Bem que uma música agora cairia bem, me ajudaria a esquecer de tudo. Já que o rádio não pega nada, eu arrisco cantar algo, quem sabe eu me alegro. Eu começo a murmurar a primeira coisa que me vem na cabeça, sem nem pensar no significado de tudo.

Riders on the storm
Riders on the storm
Into this house we’re born, Into this world we’re thrown
Like a dog whitout a bone, An actor out alone
Riders on the storm

Então eu escuto a voz DELE cantando junto. Eu olho para o retrovisor e ele está no banco de trás, completamente esparramado, com os seus grandes braços abertos apoiados no encosto do banco traseiro.

– Eu já te falei para me deixar em paz!
– Interessante a música que você escolheu!
– É só uma música.
– É, somente uma música. E como ela continua mesmo?

Então eu noto sobre o que ele está falando.

– Não interessa. É só uma música. Foi a primeira que veio na minha cabeça.
– Se você não lembra, deixe que eu continuo cantando!

There’s a killer on the road
His brain is squirmin’ like a toad
Take a long hollyday, Let your children play
If ya give this man a ride, Sweet memory will die
Killer on the road

Então ele diz com um sorriso pálido estampado no rosto.

– Eu sei que você sabe o significado disso. E você sabe que FEZ aquilo. Você sabe que QUERIA fazer aquilo.
– Eu NÃO queria fazer aquilo!!!
– Então porque fez?
– EU NÃO SEI, EU NÃO SEI!!! ME DEIXA EM PAZ!!!

Ele passa para o banco da frente e fica do meu lado, me encarando, com aqueles olhos vidrados e sem vida, e aquele maldito sorriso macabro no rosto.

– Eu sei porque você fez aquilo. E aquela vadia mereceu o que teve. Aposto que se ela estivesse viva pensaria duas vezes antes de provocar um outro cara daquele jeito.
– Ela só sorriu pra mim, e era uma mãe de família meu Deus! Estava com os filhos no carro! Eram duas crianças! DUAS CRIANÇAS!!!
– E não esquece do papai esquentadinho…

Nesse momento eu sinto a minha garganta fechar e os músculos do meu rosto se retraírem. A minha visão começa a ficar embaçada quando as lágrimas começam a correr pelo meu roto.

– Ah,o que é isso?! Assuma feito um homem o que você fez!
– Vá embora. Me deixa em paz…
– Você sabe que eu não posso. Eu venho com o carro! Um “brinde” se você preferir.

Eu piso no freio, sentindo toda a violência da frenagem brusca, mas ELE nem se mexe. O carro quase perde o controle, mas eu consigo manter ele no curso. Então ele finalmente para.

– Então EU vou embora!
– Vai começar com isso de novo? Eu sei que você não vai embora. VOCÊ sabe que não vai embora.
– EU VOU A HORA QUE EU QUISER!!!!
– Então porque está aqui discutindo ainda? Vai! Vai embora! Abre a porta e sai correndo! O que está esperando?! Vai!

Eu abro a porta e saio do carro, o deixando onde ele está, com motor ligado e tudo. Eu começo a me afastar e olho para trás. ELE está do lado de fora do carro agora, encostado na lateral, com uma mão no bolso e o braço apoiado na porta, parecendo um cowboy de propaganda de cigarro, me olhando com aquele sorriso de sempre. Eu apenas o ignoro e continuo entrando no matagal que a estrada corta. Eu ando mais um pouco e diminuo o passo. Começo a andar mais devagar a cada passada que dou, me afastando do carro, até que mais alguns metros à frente eu paro. De onde eu estou eu posso ouvir o motor funcionando… me chamando, como o canto de uma sereia. Aquela melodia monótona e grave. Uma explosão depois da outra, que entra na minha cabeça e não sai mais, uma sinfonia de um só instrumento. Ouvindo o ritmo constante daquele motor, as minhas mãos começam a tremer. Eu viro e começo a andar na direção do carro. A porta ainda está aberta, mas ELE não está mais lá. Eu entro, sento no banco e seguro o volante. Então ouço aquela maldita voz de novo.

– É, não é tão fácil quanto você pensava que seria, não é?

Eu fecho a porta e ponho o carro para andar. Eu olho no retrovisor e lá está ele no banco de trás, rindo de mim. Feito da outra vez. Eu não sei o que me faz voltar para esse carro, mas eu sei que é mais forte que eu. E eu sei que é a mesma coisa que me faz perder o controle as vezes, que me faz fazer o que eu não quero. E eu sei que ELE tem algo a ver com isso. E pensar nisso me deixa desesperado.

– Porque você não me deixa ir embora?
– Eu já te falei, não sou eu quem decide…

ELE diz isso e reclina a cabeça, apoiando ela no encosto do banco traseiro, encarando o teto.

– Eu já te disse que não sou eu quem decide…

ELE repete num tom zombeteiro.

Lá fora a noite continua mais escura do que nunca. Tão escura quanto na primeira vez que eu encontrei ELE, a alguns dias atrás. Agora eu sei que não importa onde eu tivesse parado para abastecer, ELE teria aparecido do mesmo jeito. Não importa se eu tivesse recusado dar a carona, ELE teria vindo do mesmo jeito. Para falar a verdade, ELE já estava comigo desde o começo…

Viajamos mais alguns quilômetros. ELE está quieto no banco de trás, olhando para o mundo lá fora, um mundo que eu já não reconheço mais. Um mundo cheio de incertezas para mim. Pelo menos ELE está quieto. Após algum tempo de total isolamento, eu vejo o que parece ser um ônibus com alguns poucos passageiros, passando em uma rodovia perpendicular à nossa mais à frente, com um poste ou outro iluminando o caminho. Deve ser alguma linha de transporte municipal. Quando eu cruzo a rodovia onde o ônibus passou, ele já está longe, e eu volto para a escuridão.

Então ELE coloca a cabeça entre os dois bancos da frente e fala:

– A gente deve estar perto de alguma cidade, liga o rádio pra ver se pega alguma coisa.

Eu penso um pouco e a idéia de ter um pouco de música tocando me agrada. Então eu ligo o rádio. Só chiado. Mudo as estações e nada.

– Tenta colocar o rádio na AM. Aqui nenhuma rádio FM deve pegar.

Ele tem razão. Assim que eu coloco o rádio em AM, os alto falantes começam a falar algo. Ainda está bem chiado, mas já mostra algum sinal de vida. Eu começo a procurar alguma estação. Não encontro nada, algumas estações religiosas, pregando o apocalipse, algumas estações tocando algo que acham que é música. Giro mais algumas vezes o botão seletor de estações, na esperança de achar algo, até que eu ouço uma coisa que me chama atenção.

“…testemunhas falaram que foi algo desumano. Após alguns quilômetros perseguindo as vítimas em alta velocidade, o suspeito começou a dar fechadas violentas, até que o carro das vítimas acabou capotando. Ainda depois disso, o suspeito parou o carro, voltou e ficou observando enquanto uma das vítimas, a mãe da família, tentava sair pela janela do carro capotado. Quando ela estava quase fora do carro, o suspeito disparou em alta velocidade, passando por cima da vítima, matando-a na hora. Os outro membros da família, o Pai e dois filhos, morreram durante o acidente. A polícia ainda não tem uma descrição do suspeito. As testemunhas não sabiam indicar qual a marca e o modelo do carro, apenas que era um carro antigo e preto. Quando questionado sobre o ocorrido, o Sargento da Policia Rodoviária Lázaro Camargo falou que…”

A minha mão bate violentamente no rádio, desligando ele. Não era aquilo que eu queria ouvir. Não era aquilo que ia me acalmar.

ELE pula para o banco da frente com uma agilidade sobrenatural.

– Ta ficando famoso eim! Olha só a distância que a gente já percorreu desde hoje a tarde, e já estão falando de você por aqui! Meus parabéns!!
– CALA A BOCA!!!!!

Eu começo a tremer. Parece que tem gelo no meu estomago, a sensação é horrível. A minha cabeça começa a doer, e a minha boca seca.

– CALA A BOCA!!!!
– Vai ficar nervoso comigo? HA HA HA HA!!! VOCÊ fez isso tudo, meu irmão, não eu!!!!

Eu olho para ELE, sentindo o sangue pulsando forte nas minhas veias, sentindo o suor frio escorrendo pela minha testa. Eu coloco o meu dedo na cara dele e começo a berrar com toda a força.

– CALA ESSA MALDITA BOCA!!!! FICA QUIETO!!! VOCÊ É A CAUSA DISSO TUDO!!! VOCÊ!!! ENTÃO CALA A BOA E FICA QUIETO, AGORA!!!!

Ele apenas continua rindo. Não tem nada que eu possa fazer para ele ficar quieto. Então eu simplesmente continuo o meu caminho, ouvindo aquela risada insana, enquanto lágrimas escorrem pelo meu rosto.

Algumas horas depois eu chego em uma pequena cidade. Já faz algum tempo que ELE está quieto. E já faz muito tempo que eu estou cansado. Apesar de arriscado eu procuro algum hotel ou pousada para passar o resto da noite. Eu paro para falar com um homem que tem na rua. Ele está completamente bêbado, mas consegue me indicar onde tem uma pensão, não muito longe.

Chegando lá eu deixo o carro em uma rua mais escura do lado, e entro esperando ainda haver uma cama para dormir. Lá dentro encontro uma mulher atrás de um balcão. Eu peço um quarto e ela me pede os meus documentos. Eu coloco uma nota de cinqüenta no balcão. Ela me olha e fala que realmente precisa ver os meus documentos, então eu coloco outra nota de cinqüenta do lado da outra. Ela olha para mim, me estudando e diz que tudo bem, que ela não precisa saber da minha história, mas que não quer confusão. Eu falo que eu também não quero. Ela quer o dinheiro do quarto adiantado e antes dela falar o preço, eu coloco uma nota de cem no balcão e falo que ela pode ficar com o troco. Meio desconfiada, mas feliz por ter feito algum dinheiro, ela me dá a chave de um quarto e fala que é o do final do corredor no segundo andar. Para mim está perfeito.

Chego no quarto, sozinho, e abro a janela. De onde eu estou, consigo ver o carro. Não está muito longe, a uns 30 metros talvez. E ELE está lá, do lado da besta negra. Me olhando, sorrindo, se deliciando com toda a situação. Se ele já não estivesse morto, provavelmente eu o mataria.

Eu deito na cama sem tirar a roupa e fecho os olhos, tentando dormir, o que acaba se provando ser muito difícil. Aquele carro não me sai da cabeça. Eu fico rolando na cama, mas o sono finalmente vem, mas um sono agitado. Nada de sono dos justos para mim.

Eu sonho que estou dirigindo. Sonho que estou na estrada. Uma estrada sem fim, com uma paisagem pós apocalíptica, árida. A pouca vegetação que eu vejo está queimada. O céu está em um tom alaranjado, doentio. Há resto de carros por todos os lados, sucatas enferrujadas. Eu paro o carro e saio dele. Então noto que no chão, no acostamento da estrada, junto aos restos dos carros, estão também ossos. Ossos que um dia já tiveram carne e nome. Ossos que um dia já tiveram vida. Eu não reconheço o lugar onde eu estou, mas sei que não deveria estar lá. De repente o carro morre, aquele demônio negro finalmente se cala. Então eu escuto os gemidos. Suplicas de piedade, rosnados de ódio. Eu olho para trás, e a estrada parece estar tomada por pessoas. Pessoas na estrada e fora dela, formando uma parede. Todas paradas, onde antes não havia ninguém, e na frente de todos, a família que eu destruí. Mas não são pessoas com uma aparência normal. São apenas cadáveres já em decomposição, alguns com roupas rasgadas, alguns nus, alguns com a carne dilacerada, alguns com membros amputados. Então a mãe da família que eu atropelei começa a andar na minha direção, e os outros seguem o gesto dela. Eu fico sem reação, parado, vendo aquele mar de abominação se movendo na minha direção. O meu coração dispara e eu resolvo que está na hora de me mandar. Eu entro no carro e giro a chave. Nada, o carro não pega. Eu giro a chave de novo, nada de novo. Eu olho no retrovisor e a multidão está correndo na minha direção. Em pânico eu tranco as portas e fecho os vidros, e começo a bombear o pedal do acelerador enquanto giro a chave, mas o carro não quer pegar. Segundos depois eles finalmente chegam no carro, e começam a tentar abrir a porta e a bater nos vidros. Eu continuo tentando ligar o carro, mas ele não pega. A essa altura eles já cercaram o carro e começam a balançar ele. Eu olho para o lado e vejo o rosto daquela mulher grudado na janela. Seus olhos demandam justiça pelo assassinato da sua família. Quando eu olho para a frente, vejo ELE, em pé na frente do carro, com aquele sorriso macabro, se deliciando com aquilo tudo. De repente alguém pula em cima do capô, com um pedaço de pau na mão. É o pai da família feliz. O rosto dele está completamente tomado pela raiva, e então ele começa a bater no vidro. Ele bate uma vez e o vidro trinca. A segunda e o vidro começa a rachar. A terceira batida é tão alta que me faz acordar.

Graças a Deus eu acordei. Estou completamente coberto de suor, está quente e abafado e lá fora o dia já está claro, deve ser umas 9 horas e eu ainda estou cansado. Então eu escuto a batida de novo. Eu pulo da cama com o susto, procurando de onde está vindo aquele barulho, então noto que estão batendo na porta. Devagar eu vou até a porta e tento ouvir quem está lá fora.

– Você tem certeza de que ele está nesse quarto?
– Sim, eu mandei ele pro ultimo quarto do segundo andar, é esse.
– Arnaldo, chama o sargento e fala que a gente vai ter que arrombar.

Merda. A polícia! A MALDITA POLÍCIA!!! A DESGRAÇADA CHAMOU A MALDITA POLÍCIA!!!! Eu devia pegar o pescoço dela e esmagar, devia martelar a parede com a cabeça dela!!! Desgraçada!!!! Mas eu preciso me controlar. Eu tenho que fugir. A polícia está do lado de fora do meu quarto. A porta é a única saída.

– Aqui é a polícia! Abra a porta agora e se entregue!

Eu vou até a janela e sem pensar eu pulo. Quando eu caio a minha perna fraqueja, me jogando de lado, fazendo todo o peso do meu corpo cair em cima do meu braço esquerdo. Dói muito, mas pelo menos eu não estou mais no quarto. Tem um policial vigiando o carro, ele me ouve caindo. Ele vem ver o que é. Eu agarro a primeira coisa que eu vejo, um pedaço de cano, e espero deitado no chão, atrás do murinho da pensão. Quando ele está perto o suficiente eu pulo de detrás do muro e acerto a cabeça dele. Ele cai quase que na hora, como um boneco de pano. Então eu ouço o som da porta sendo arrombada no quarto onde estava. Não tenho mais tempo a perder, eu pulo a mureta e corro em direção ao carro. Um policial põe a cabeça para fora da janela e grita:

– Ele ta fugindo! Ele ta fugindo! Ele acertou o Ciqueira! Alguém vai atrás dele!

E então um outro policial pula a janela, em quanto mais dois vêem correndo da frente da pensão. Eu quase não tenho tempo de pensar. Eu puxo a chave do meu bolso e abro a porta, sentindo o meu braço doer feito louco. Eu entro e tranco a porta. Nesse instante eu penso que o carro não vai pegar, mas quando eu giro a chave, aquele rosnado toma conta dos meus ouvidos, ensurdecedor como sempre. Assim que eu engato a primeira o policial que pulou a janela chega no carro e segura a maçaneta, mas eu piso no acelerador, derrubando ele no chão. Os outros dois sacam as suas pistolas e começam a atirar em mim, mas já estou longe o suficiente para não acertarem.

– Eles te acharam. Eu sabia que não ia ser uma boa idéia você parar para dormir. Agora eles sabem que carro perseguir.

Aquela voz. ELE está sentado no banco do meu lado, e ELE está certo. Foi muito arriscado fazer aquilo e agora eu ia pagar o preço. Eu tento manobrar pela cidade, ignorando a dor no braço. Pouco tempo depois eu escuto o som das sirenes. Eu olho no retrovisor e sinto vontade de rir. Aqueles carrinhos de brinquedo da polícia nunca vão me pegar. Assim que eu chego na estrada, eu piso fundo. Eu começo a me afastar da polícia cada vez mais.

– Maldita cadela!!! Ela chamou a polícia!!!
– Pode não ter sido ela.
– Como assim? Quem mais sabia que eu estava lá?
– Metade da cidade. Esse carro faz muito barulho, da para ouvir de longe ele chegando. Muita gente deve ter visto você chegando. Você não devia ter passado lá.
– E por que você não me falou nada?
– Calma ai, você decide pra onde vai. Eu só vou junto.
– Merda!!! MERDA MERDA MERDA!!! Eu ainda acho que foi aquela maldita cadela!
– Agora não adianta mais querer descobrir de quem foi a culpa. Tarde demais. Você realmente não deveria ter parado lá.
– Eu estava cansado, precisava dormir em uma cama um pouco.
– Você está com uma cara de bosta pra que descansou um pouco.
– Eu falei que eu precisava descansar um pouco, não que eu descansei.

Então um som interrompe a nossa conversa. Um som que me preocupa.

– Era só o que faltava, um helicóptero. Maldição.

Eles mandaram um helicóptero atrás de mim. Tudo o que eu precisava. Droga. Eu saio da estradinha que eu estou e entro em uma estrada maior, provavelmente alguma estrada principal. Tem algum transito nela, mas nada que me preocupe. Eu piso fundo, e a maioria das pessoas tiram os seus carros da frente. Mais a frente eu vejo um retorno, e um pouco depois do retorno vejo algo que me preocupa. Parece que eles mandaram o que eles tinham de melhor atrás de mim. Carros grandes e rápidos, mas provavelmente não tão rápidos quanto o meu. Sim, agora esse é o MEU carro. Eu sou o dono dele. A pequena parte de sanidade que ainda restava em mim ficou naquela pensão depois que eu pulei a janela. Mas agora eu tenho coisa mais importante para me preocupar. Se a polícia chegar no retorno antes que eu, eles vão fazer uma barricada ou coisa parecida. Eu piso mais fundo, fazendo o acelerador encostar no chão. Chego a ralar em um carro ou outro, mas a maioria sai da frente sem problemas quando me vê chegando. Eu estou mais perto do retorno, assim como a polícia. Um dos carros deles parece que vai chegar antes de mim. Eu já estou pisando o mais fundo que eu posso, já estou na 4ª e última marcha, a rotação do motor continua subindo aos poucos, assim como a velocidade. Não sei por mais quanto tempo o carro agüenta. Assim que eu chego no retorno eu posso ver o carro da polícia. Ali não tem os blocos de concreto separando as duas pistas. Então o policial entra com tudo na minha pista, na contra mão dele, tentando pegar a lateral do meu carro, mas não consegue por alguns centímetros. Eu olho no retrovisor e vejo ele pegando uma caminhonete de frente. É algo horrível de se ver, mas eu explodo em uma gargalhada.

– HA HA HA HA HA HA HA HA!!!! Vocês acham que podem me pegar? Podem tentar!!!!! HA HA HA HA HA!!!

Eu duvido muito que alguém tenha sobrevivido àquele acidente. Os outros carros da polícia parecem ser mais inteligentes, eles diminuem antes de entrar na pista que eu estou, e aceleram assim que colocam os carros no sentido certo, disparando em frente, continuando a perseguição, e o helicóptero lá em cima, me vigiando, provavelmente falando onde estou e pedindo reforço.

Um caminhoneiro à minha frente parece entender o que está acontecendo e tenta ajudar a polícia, colocando o caminhão na minha frente. Eu tenho que brecar para não bater nele. Eu tento ir para um dos lados e ele me fecha. Eu tento ir para o outro e ele volta a me fechar. Isso está me pegando um tempo precioso, a polícia está me alcançando. Eu tento passar mais uma vez pelo acostamento, mas ele me fecha mais uma vez.

– Cara, passa logo esse caminhão, eles tão chegando perto!
– Eu sei! EU SEI!!! MAS ESSE CRETINO NÃO SAI DA MINHA FRENTE!!!!

Com a polícia agora a pouco mais de 50 metros atrás de mim, eu finalmente consigo passar o caminhão. Eu finjo que vou para um lado, e na mesma hora viro para o outro. Enquanto o caminhoneiro joga o caminhão para um lado eu passo rosnando pelo outro. Quando ele vê que eu estou passando ele tenta me prensar contra a proteção de concreto no meio da pista, mas é tarde demais, eu já estou a frente dele, com o dedo do meio para fora da janela, em uma atitude triunfante. Só que ele jogou o caminhão tão bruscamente para o lado tentando me parar, que não concebe puxar ele de volta, fazendo o caminhão ir de encontro com a mureta. Quando o monstro de metal bate no concreto ele perde o controle. Numa tentativa desesperada, o caminhoneiro tenta jogar o caminhão para a esquerda, mas ele não viu o carro de polícia que estava vindo logo atrás de mim e bate nele violentamente, fazendo os dois saírem da estrada e baterem na vala de escoamento de água da chuva, o que faz o caminhão e o carro de polícia capotarem de uma maneira horrível. Mais dois policiais que não vão voltar para jantar em casa de noite.

Eu continuo em frente, seguido pelos outros carros de polícia, que parecem estar indiferentes com o monte de metal retorcido que a poucos segundos era um dos carros deles. Quando olho para cima vejo mais três helicópteros, mas não são da polícia. A mídia finalmente chegou, feito urubus na carniça, devorando tudo aquilo para fazerem o seu show no jornal das 8:00. Se é um espetáculo que eles querem, é um que vão ter.

A maioria dos carros saem da minha frente, eu tenho que desviar de poucos. Até que eu chego atrás de algum cidadão que quer ser herói. Ele quer fazer a mesma coisa que o caminhão, mas com um carro bem menor que o meu. Eu sei exatamente o que fazer. Eu acelero e alinho a minha roda da frente com a roda traseira dele, sem maiores dificuldades, então eu jogo o carro violentamente em cima dele. As rodas traseiras dele derrapam, enquanto o carro perde o controle e começa a virar, até ficar em um angulo perpendicular com a estrada. Então o som de pneus cantando e derrapando dão lugar ao som de metal batendo contra o asfalto, enquanto o carro começa a capotar em alta velocidade. Eu olho para o retrovisor e vejo a polícia simplesmente desviar dele e continuar a me perseguir.

Alguns quilômetros à frente eu vejo algo na estrada. Um policial a pé, desviando o trânsito para a outra pista, em um dos retornos, deixando a pista onde estou livre, sem transito nenhum depois dele. Eu ponho a cabeça para fora e passo do lado dele berrando feito um louco. Para falar a verdade eu me sinto um louco agora, e eu gosto disso.

– É cara, você saiu melhor que a encomenda. Agora sim eu estou gostando de ver!
– HA HA HA HA HA!!!! Eu quero ver eles me pegarem!!!!! UUUHHHHUUUUUU!!!!!!!!!!!!!!!!!!

A estrada agora está livre, ninguém na minha frente, e atrás os malditos carros de policia. Eu olho pelo retrovisor e vejo, a pouco menos de 50 metros, os dois carros que estão na frente do batalhão de polícia. Em cada um há um policial com parte do corpo para fora da janela. Como eu esperava agora esta na hora de eles me atacarem. Sem pessoas para serem atingidas eles começam a atirar em mim. Eu piso no freio em um movimento ousado e o resultado é melhor do que eu esperava. O Maverick diminui bruscamente a velocidade, e eu me seguro pronto para a colisão. O policial que está atrás de mim tenta desviar, jogando o carro para a direita, indo de encontro com a mureta de concreto. O outro policial que estava com parte do corpo para fora da viatura não foi tão rápido, e acabou com o braço e a cabeça prensados entre o carro e a mureta, deixando uma faixa vermelha no concreto.

Lado a lado com a outra viatura eu olho nos olhos do policial que está para fora do carro e começo a gargalhar feito um louco. Ele fica sem reação, só olhando para mim, enquanto eu volto a acelerar e a aumentar a distancia. O policial do carro que bateu na mureta para para tentar ajudar o parceiro, mas provavelmente já é tarde demais. Melhor para mim, um carro a menos na perseguição.

Eu olho para trás e eles não estão tentando mais nada, parecem estar apenas me acompanhando. Um pouco mais à frente eu vejo o por que. Uma barricada. Algumas viaturas atravessadas na estrada, com alguns policiais atrás delas, empunhando rifles e pistolas. Eu tiro o pé do acelerador, pensando o que eu vou fazer.

– Vai desistir agora cara?
– Não. Só estou pensando.
– Não tem o que pensar, só tem uma coisa para ser feita.
– Certo, você tem razão.

Eu olho mais uma vez para os helicópteros das emissoras de TV e coloco a cabeça para fora da janela.

– É ISSO O QUE VOCÊS QUEREM??? SEUS PORCOS!!!! É ISSO O QUE VOCÊS TERÃO!!!!!

Eu piso fundo no acelerador, fazendo o motor urrar e o carro começar a andar cada vez mais rápido de novo. As viaturas que estavam me perseguindo começam a frear, ficando para trás. Quando começo a chegar perto da barricada eu sinto um grito se formando na minha garganta, algo primal. Eu estou cada vez mais rápido e não faço menção de que vou parar. Os policiais que estão perto da barricada abrem fogo, atirando com escopetas, rifles, pistolas, revolveres. Eu sinto alguns tiros pegando no carro, assim como sinto alguns tiros pegando em mim, mas isso não me faz diminuir, e nem parar de berrar. Quando eles vêem que eu não vou parar o carro, correm para as laterais da estrada e eu vou de encontro com a fileira de carros. Por sorte eu consigo acertar bem entre dois carros e furo a barricada deles, jogando os carros para os lados. Eu sinto a carroceria negra e dura ralando nas viaturas, como se fosse a minha própria pele, mas apesar da dor eu estou livre, e indo ainda mais rápido.

Depois de se refazerem do susto, os policiais entram nas viaturas que ainda tem condições de andar e reiniciam a perseguição.

– Cara, não sei se você notou, mas você está sangrando.
– É, eu notei.
– Você está sangrando muito! Não que eu me importe muito com isso, mas depois dessa, você conseguiu o meu respeito!

Eu olho para ELE e tento dar um sorriso, mas eu tusso, fazendo um pouco de sangue sair pela minha boca. Eu olho para mim e vejo que eles me acertaram umas 3 ou 4 balas. Uma no braço, que já estava machucado, e o resto no peito. O meu braço está doendo muito. Mas eu não ligo. Só não gosto do que eles fizeram com o carro. Um clássico como esse, como eles puderam fazer isso? Malditos. O para brisa está quebrado, assim como o vidro de trás e o da porta do passageiro. O capô está cheio de buracos, as portas e o porta malas também. A frente do carro está arrasada, completamente amassada, assim como as laterais. O carro perdeu boa parte do esplendor dele, mas continua mais rápido do que nunca. Parece que há um demônio de oito cabeças no motor, empurrando o carro para a frente.

Eu olho para trás, e vejo que eles estão longe. Até os helicópteros parecem estar ficando para trás. Eu tiro o que sobrou do para brisa com a mão e me alegro ao sentir o vento no rosto. Aquilo parece me revigorar. Tem uma curva mais fechada um pouco à frente. Eu erro feio nela e o carro derrapa, quase capotando, mas eu consigo controlar ele e sigo em frente. Mas graças a isso a polícia chega bem mais perto. Até eu conseguir retomar a velocidade eles já estão quase no meu pescoço. Um policial começa a berrar em um megafone para eu me entregar, coisa que nem passa pela minha cabeça. Quando eles vêem isso, eles tomam uma atitude mais drástica. Um policial mira e, depois de alguns tiros, consegue acertar um dos meus pneus traseiros. O carro da uma balançada mas eu consigo segurar ele. Eu sinto o pneu vazio sendo comido pela roda de ferro e pelo asfalto, sendo reduzido a algumas simples tiras de borracha. O policial atira na minha outra roda traseira, e a mesma coisa acontece.

Mesmo com as duas rodas no chão soltando faísca, o carro continua a acelerar, para a minha felicidade e para o espanto dos policiais. Nas curvas da estrada uma chuva de faísca segue o meu rastro, e as vezes eu quase perco o controle, mas isso não me faz diminuir a velocidade. Então eu começo a sentir frio. Eu olho para baixo e vejo o motivo. Eu estou sangrando, e muito. Mas eu já não me importo mais com isso. A única coisa que eu quero fazer, é acelerar o carro. Ainda não tem nenhum carro pela frente. A estrada ainda é só minha. Eu olho para as minhas mãos e elas estão começando a ficar brancas. Já não sinto mais os meus dedos. Então o carro da uma engasgada, e então outra. A minha visão está começando a ficar turva. Mas com esforço eu olho para o painel e vejo que o ponteiro marcador de combustível está caído para a esquerda.

– Maldição! A gasolina! Merda!

Eu tusso um pouco de sangue, e o vento joga tudo no meu rosto. Eu começo a me sentir cada vez mais fraco, mas ainda consigo segurar a direção com força, e ainda consigo forçar o pé contra o acelerador. Isso é tudo o que eu preciso, isso é tudo o que eu quero. Mas a minha visão está começando a escurecer. Eu vejo alguns pontos brilhantes flutuando diante dos meus olhos, e acho aquilo tudo maravilhoso.

– Você sabe que chegou a hora!
– Cof, eu se..cof, eu sei.
– É aqui que eu saio, e é aqui que você toma o meu lugar. Agora ele quer você.

Eu olho para ELE e concordo com a cabeça.

– Agora você está pronto.

E com essas palavras ELE sai pela janela, como se o carro estivesse parado. Eu olho no retrovisor e vejo ele parado na estrada, como se estivesse me dando adeus. Agora sou só eu e o carro. Só nós dois. Nesse momento eu vejo que ele não me pertence, e sim o contrário, mas isso surpreendentemente me agrada.

O colosso negro, que um dia já foi exuberante, da a sua engasgada final, e o motor morre. A gasolina se foi toda, quase como o meu sangue. A minha visão clareia um pouco e eu tenho a impressão de ver uma curva mais adiante, então tudo fica escuro. Eu faço um esforço para ver, mas eu não consigo ver nada a mais de 3 metros do carro. Então eu repouso a cabeça no volante. E o suave toque do couro que reveste a direção é a última coisa que eu sinto.

“Após uma longa perseguição que terminou em uma tragédia, foi confirmado que o suspeito era o autor do assassinato da família Tofler. A sua identidade ainda não foi confirmada. Ele passou por quatro estados, e foi encontrado em Santa Esperança, onde a perseguição teve inicio. Sete viaturas e um helicóptero da Policia Federal perseguiram o desesperado fugitivo por mais de 150km. Depois de furar um bloqueio usando o próprio carro, um Ford Maverick, o suspeito conseguiu fugir por mais alguns quilômetros, mas após a polícia furar os dois pneus traseiros do carro, o fugitivo acabou derrapando em uma curva, a uma velocidade superior a 200km/h, capotando o carro e destruindo-o completamente. Além do suspeito, 5 Policiais Federais e 4 civis perderam a vida durante a perseguição. Mais detalhes depois do comercial.”

Em um ferro velho, um Maverick negro descansa no fundo do pátio, exposto ao sol e à chuva.

– E quanto está saindo aquele ali?
– O Maverick preto? Eu te faço ele por 6 mil.
– 6 mil? O carro ta acabado!
– É o preço.
– … Ta certo, eu vou levar ele.
– Mas rapaz eu vou te falar uma coisa estranha, a cada dia que passa esse carro tem uma aparência melhor, é como se ele tivesse se consertando sozinho!

O cliente deve estar pensando que o dono do ferro velho já deve ter tomado algumas durante o almoço. Mas ele não liga. Apesar da aparência, de algum jeito ele sabe que o carro ainda anda. É quase como se o carro chamasse ele. Eu sei como é isso, pois eu também já ouvi esse chamado uma vez. Vai dar algum trabalho para ele ser restaurado, mas eu tenho certeza que esse cara não vai descansar enquanto essa máquina não estiver perfeita de novo. E quando ele sair para dar a primeira volta, eu estarei lá…

Escrito por: J-Molka – Sp

9 respostas em “Maverick

  1. Cara, muito bom o texto! Nem sei como cheguei a este blog, mas o texto me prendeu do inicio ao fim… apesar de ser extenso, é excelente! E o final interessantíssimo…

    O autor tem mais textos?

  2. exatamente como oo amigo Amerigo falou .. este texto nos prende de começo ao fim ..

    se tiver o outro exemplar dele .. comunique . sou apaixonado por maverick ..

    Grande Abraço .

    ATT

    Julio Dib

  3. muito ferra o testo
    parabens para quem escreveu
    tenho um maverick preto gt
    cuaze entrei dentro do pc lendo
    valeu um abraso a todos

  4. Maluco esta historia e simplesmente cabulosa!!!!!!!!

    chapado,mas me fala da onde vem essa historia,ela foi veridica ou e so uma brisa que alguem a contou.Eu assim como muitos amo maverick e principalmente os v8 legitimos e envenenados.gostei muitooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooo.

  5. Muito a fude este texto, é mais loko que o Batman eo Jaspion juntos….. Curti de mais, pois o meu amigo tem dois Mavekos um V8 e um V4 para quem gosta de acelerar que nem agente entre em contato…… Abraços para todos ae galera

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